UM OUTRO ANO CHEGA AO FIM
Aqui estou, tal como prometera, a escrever, quiçá, o meu último artigo deste ano. Lá atrás, na televisão, uma entrevista com a Mariza que me passa absolutamente despercebida.
Salva-se o fado, por trás de tudo. Gosto de ouvir fado, claro, até nisso sou portuguesa.
O que me leva a escrever, hoje, afinal? Primeiro que tudo, a promessa feita, de voltar a escrever ainda este ano. Depois...depois uma história que jamais pensei sequer que me acontecesse, ou melhor, que acontecesse a alguém de quem sou próxima.
Em vésperas de ano novo, com as prendas todas do recente Natal, a bagagem, as roupas de Inverno, as gatas da namorada e a namorada ela mesma, achei por bem ir levar o meu filhote e toda essa parafernália de coisas, gente e bicheza, ao Algarve, onde ele decidiu ficar a viver com a sua mais-que-tudo. Decisão acertada, de resto. Como tinha feito tudo o que me propusera para este ano de 2004, em termos de trabalho, resolvi tirar mais um diazito e, na volta, pernoitar no Alentejo, em casa de uma grande amiga que não via quase há dois anos. Passava por um processo de separação, depois de um casamento bastante difícil, incluindo cenas de extrema violência doméstica. Sempre que lhe telefonava sentia-a triste, abatida. Há duas semanas ela deixara escapar um "Preciso tanto de falar contigo!!!". Lá fui eu, contente da vida, até ao Alentejo, não sem antes fazer uma pequena paragem no Shopping da Guia e ter lanchado com outra GRANDE amiga. Gosto de levar os presentes de Natal em mão, que se há-de fazer...
Eis-me então chegada, antecipando uma daquelas noitadas de adolescentes, de risos e tagarelagem, de música, de poesia, coisas que ambas adoramos e costumávamos fazer quando éramos vizinhas de esquerdo-direito.Como sentia saudades desses tempos...!!!
A porta abriu-se e o choque foi brutal: vi a minha amiga, que mede 1,65m, transformada num esqueleto de 41 kgs, enormes olheiras negras, sem qualquer brilho no olhar. O abraço que trocámos foi a única voz de que fui capaz. Secara-se-me a garganta, toda ela feita nó.
Contou-me ao jantar que estava medicada, que estivera no hospital, quase a ir-se desta dimensão. No decorrer da conversa, cobardemente, egoisticamente, apetecia-me fugir, sair dali, não a ver assim. Tentei animá-la, mas não sabia muito bem como. Como o meu dia tinha sido muito longo, disse-lhe que estava exausta e fui deitar-me.
Lembro-me de pensar que não era capaz de a ajudar, e pedi " Meu Deus, ajuda a minha amiga. Faz-me saber se posso fazer também alguma coisa por ela.!"
Já há alguns anos que aprendi a entregar o que me parece impossível de resolver, o que me deixa com a sensação de absoluta impotência, nas mãos de Deus. Adormeci.
Hoje de manhã, levantei-me com o sol entrando a jorros pela janela, com a certeza de que PRECISAVA fazer alguma coisa. Não me perguntem o quê, pois eu mesma desconhecia o que pudesse ser. Apercebi-me, no caminho para a pastelaria onde a levava a tomar o pequeno-almoço, que até fome a minha amiga passara, que a casa onde vive tem 2 meses de renda em atraso, e que a depressão em que mergulhara, a anorexia de que padece e a deixara assim, se devem principalmente a uma enorme solidão, a um desamparo total, e à falta do mínimo indispensável a qualquer ser humano para viver.
Resta-me dizer-vos que a minha amiga é de um altruísmo ímpar, tem levado a vida a dedicar-se aos que sofrem e precisam mais, trabalhando em Cercis e lares de idosos, como voluntária. Apercebi-me que ela tinha desistido de viver, pura e simplesmente. Tinham-lhe roubado aquela força da natureza que sempre brilhara nela.
Aí, eu soube o que poderia fazer: precisava reacender-lhe a esperança. Telefonei a um amigo e disse-lhe: "Preciso da tua ajuda para uma amiga que está no limiar de tudo." A chamada não foi atendida, mas decidi que iria deixar mensagem. Dez minutos mais tarde, ele respondia-me que no que dele dependesse, tudo faria para ajudar. Agradeci-lhe do fundo do coração. Encontar-nos-emos mal passe o fim-de-ano, e eu sei que ele vai cumprir a sua palavra. Bem-hajas!
São quase 2 da manhã, já é o último dia de Dezembro de 2004.
A minha amiga dorme, lá dentro, no quarto-de-visitas. Trouxe armas e bagagens e vai cá ficar até querer, até que se reerga, encontre um trabalho para se poder sustentar e viver com dignidade. Vai aqui ficar até ter de volta a alegria e a paz. E eu vou ter o privilégio de a ver de novo bem, se Deus quiser.
Afinal, a vida é uma soma de dias, vividos apenas um de cada vez.
Hoje, trouxe-a comigo. Amanhã vou levá-la a ver a árvore em Belém... a seguir, logo se verá, não importa nada neste momento!
Tenham um 2005 cheio de luz e paz, e sobretudo...pleno de amizade e amor.
Bem hajam!